domingo, 29 de março de 2015

Primal


Gostaria de lhe oferecer uma poesia bonita
mas no momento tenho apenas esse arroz com feijão,
temperado é verdade,
mas ainda assim bem simples.

Verdade também que estou cansada
das palavras, das virgulas, dos acentos,
de toda regra gramatical 
do gênero humano.

Bem cansada de precisar suavizar o que digo,
de tentar entender de outra forma o que ouço,
de não ver com maus olhos o que é realmente feio,
de ficar na minha baia cuidando apenas das minhas coisas.

Acho que é por isso que a poesia tem murchado
e poucas folhas tem surgido,
tenho precisado inclusive me alimentar fora
para conseguir me sentir realmente viva.

Ganhei a pouco um pedacinho de terra
e estou adubando com François Villon, Ana Gorria,
Matsuo Bashô, Margarita Aliguer, Yehuda Amichai,
mas dependo das monções do outono para que algo brote.

Gostaria de lhe oferecer algo fino e raro
que pudesse lhe transportar para admiráveis paragens
mas no momento tenho apenas simples poesias
feitas de suor e barro.



San, 30/03/2015

Credo cruz


Gostaria de acreditar em você
mas não posso.

Não posso mais pisar em falso,
abrir portas estranhas,
ir por caminhos mal iluminados.

Não posso mais me esfaquear
todas as tardes,
morrer todas as noites
e renascer todas as manhãs.

Não posso mais viver a insolência,
me apoiar na impermanência,
contar com a ingerência
e incompetência alheia.

Eu gostaria de acreditar em você
mas não posso mais.



San, 12/03/2015

Coisa de vó


Não cospe no espelho
senão a imagem embaça.

Bons conselhos são lógicos, simples e diretos, 
tratam de questões reais do mundo real.

Se jogar pedra para cima
pode cair na sua própria cabeça.

Bons conselhos lhe mostram o absurdo
e lhe protegem do vexame,
não usam do sarcasmo e nem da sátira.

Quanto mais você pegar
mais terá que carregar.

Bons conselhos lhe olham nos olhos
não são interesseiros ou premeditados.

Quem cedo madruga
não pode dormir tarde.

Bons conselhos são ágeis,
não enrolam e nem querem lhe testar.

Quando a morte chega
a casa se esvazia.

Bons conselhos nem sempre são agradáveis.




San, 29/03/2015

Percepções


Às vezes percebo
que estou absolutamente parada
em cima de uma esteira rolante,
dessas de aeroporto.

Não sou eu que me mexo
estou sendo levada.

Posso até ouvir 
os sons do mecanismo,
pequenos crics e cracs,

Ai tento pular fora
do que esteja acontecendo,
e geralmente bato a cabeça, 
quebro o braço, torço a perna, 
machuco meu coração.

Se pudesse ver tudo bem do alto,
teria outras escolhas e atitudes,
outros erros e acertos,
outro motivo de viver.



San, 29/03/2015

Musica


Continuo a viver sem dar atenção
as palavras, conselhos, resmungos,
dicas, ameaças, sermões.

Continuo a virar o pescoço
para todos os lados,
soltando gradativamente
as viseiras familiares, religiosas,
étnicas, comunitárias, sociais.

Continuo sendo uma pessoa que não se adapta,
essa pessoa sem lugar ou função específica,
essa pessoa cheia de duvidas e perguntas,
essa pessoa não definida.

E ao invés de falar eu canto,
eu canto para aquela parte temida ,
soterrada, ignorada, não entendida,
aquela parte brilhante e formidável
que todos tem,
para que me ouçam e saibam 
que existe um outro ser realmente vivo.

Eu continuo pela minha voz,
por aquilo que não digo
mas alguém escuta.



San, 29/03/2015

Bodhisattva


Enfim que tenha fim
todo sofrimento,
morte-nascimento,
todo tormento da separação.

E que seja esse o ultimo dos dias
da raiva, medo, apego e ganância,
nascendo o amanhã
de plena abundância
para todos os seres.

Sim,
eu vou dançar,
eu vou cantar,
e cem milhões de vezes
me prostrarei
nessa estranha longa.

Os beija-flores despejam água
sobre minha cabeça,
as borboletas batem suas asas
para me refrescar,
e as flores todas abrem
ao me sentir passar.

Sim,
se precisar
cem milhões de vezes irei nascer
para apagar do mundo
toda ignorância.



San, 29/03/2015

Por que?



Não acha estranho 
estar caminhando 
a tanto tempo
nesse espaço 
desconhecido?

E não ter placas,
mapas, sinais, dicas,
qualquer indicação
da sua direção?

Não acha estranho
ser invisível?

Morar em frestas da parede?

Segurar sacos de papel 
vazios e amarrotados
como se fossem preciosidades?

Não acha estranho?



San, 29/03/2015

Hoarders


Quanto mais melhor?

Menos espaço para se mexer
e mais coisas para conter
o vazar da sua insegurança.

A ganância disfarçada de reciclagem,
o medo contido na subserviente vontade
de não perder nada.

Tudo se transforma
mas fica.

Tudo se espalha
à vista ou escondido,
prendendo a vida
aquilo que ainda não foi digerido.

A extrema negação 
da passagem do tempo,
o envelhecimento,
a perda, a morte, 
a transformação.



San, 29/03/2015

Gado


Continuem a caminhar
continuem.

Continuem a acreditar,
continuem.

Continuem a sonhar,
continuem.

Moscas que serão esmagadas
pela mão ágil, maligna, bem treinada,
do poder centralizador.

Não são seres humanos
apenas borrões no tempo e espaço
que servem a algo,
que servem a alguém.

Continuem
sem pensar,
continuem.




San, 29/03/2015

Saudades de mim mesma



Você mentiu 1000 vezes e eu quis acreditar
porque é menos trabalhoso que mudar opiniões.

Mas agora sinto dor todos os dias,
dor de ter fugido da outra dor,
a dor de perder a sensação
de comodidade e segurança.

Hoje sinto nojo de você
e saudades de mim mesma,
suspiro o dia todo de expectativa,
ansiedade, esperança, choque.

Meu coração bate tão lento
que não consigo levantar,
não consigo reagir.

Estou presa nesse mito,
no seu rito,
ritmo de não viver.




San, 12/03/2015

Cintilações




As algas nascem ao redor das cabeças coroadas
e todo aquele medo-respeito-devoção-poder
não pode salvar do esquecimento.

O tempo caminha sem pedir licença,
sem se importar com grandes obras ou dinastias.

Somos todos reféns.

Você pode entender isso?

Florestas milenares com suas raízes compartilhadas
riem dos nossos estúpidos esforços
para deixar uma marca na eternidade.

O nascimento e a morte são um breve sopro,
uma ínfima ondulação na energia cósmica,
imperceptível na maior parte das vezes.

As cabeças coroadas descansam no leito de areia e água
e os tubarões e tordos não se interessam pela história cintilante.

Palavras não brotam ao cair no solo,
palavras não povoam o planeta.

Você entende o que realmente esta acontecendo?



San, 21/02/2012

Meu próprio lugar


Por tantos anos
tenho dado respostas
esquecendo 
as perguntas certas.

Por tantos anos
tenho aberto caminhos
para desconhecidos.

Porque a vida
é um sonho palpável
tão odiosa
e muito agradável.

E agora nem sei
o que lhe ensinar
nunca encontrei
meu próprio lugar.



San, 28/03/2015

Desconhecer


Fico triste ao pensar
que não posso mais gostar
de você.

Que os belos detalhes
e reverências
foram sugados e triturados
pela convivência.

Desconhecer
pode ser
a coisa 
mais forte
para sustentar
o amor.


San, 28/03/2015

MORTE



Quando minha mãe morreu
o dia ainda não tinha nascido,
era uma dessas horas frias
do final da madrugada
em que o vento assovia
e os boêmios começam a tropeçar
para suas casas.

Quando minha mãe morreu
estava sozinha na cozinha,
deitada sobre o piso recém lavado
e ainda cheirando a eucalipto.

Seus cabelos 
estavam presos 
num coque
como de costume
e estava sem batom.

Era um dia 
no meio da semana,
a geladeira estava abastecida,
as roupas dobradas
dentro do cesto de vime,
a luz de fora não estava acesa,
as louças imaculadamente limpas,
quando minha mãe morreu.



San, 28/03/2015

Viagens


Alguém toca um piano desafinado
tamborilando com dedos pouco ágeis
as teclas do marasmo.

Conheço essa,
essa também.

Ser artista de rua 
é se conectar
ao espirito do ambiente
tocando o que convém
a toda gente.



San, 28/03/2015

Águas


As águas molharam 
meus passos na saída,
as águas de muitas vidas,
as águas de muitos choros.

Sou uma especialista
em deixar para trás
malas pesadas e inadequadas.

E a cheiro da rua molhada,
o som das grossas gotas 
no telhado
são como hinos,
vozes melódicas
prenhas de esperança.

Então aqui me despeço
levando comigo
tudo que é realmente meu
e deixando contigo
tudo que é unicamente seu.


San, 28/03/2015

Eu não lhe reconheço


Somos todos ligados 
pelas mesmas raízes
humanas, mundanas, 
profanas.

E quero lhe dizer
que posso compreender
as suas incongruências
que se manifestam 
em atos estúpidos
de medo e violência.

Mas aceitar? Nunca!

Compartilhamos o solo, 
sol, chuva, vento,
mas não sonhos e desejos,
em essência não somos o mesmo,
eu não lhe reconheço.



San, 29/03/2015

quinta-feira, 26 de março de 2015

Zero point


Inspiração 
ou transpiração?

Química,
apenas química.

Dopamina, 
endorfina,
norepinefrina,
adrenalina,
oxitocina,
noradrenalina,
serotonina.

86 bilhões de neurônios
brincando de nomear o indivisível,
entender o inconcebível,
parafraseando o misterioso 
ponto zero.

E depois
de tanta trama,
tanto drama,
pinturas, sonhos, guerras,
amores, segredos, dança,
credos, livros, teses, 
tantas coisas ainda a descobrir,
a dissolução,
morte, apodrecimento, 
transformação.

Química,
apenas química.




San, 27/03/2015

Ninho



Minha casa é tão longe!

Onde as imperfeições
não conseguem chegar.

Onde as avaliações
não podem magoar.

Porque aquilo que não alcançamos 
não sofre os desgastes do tempo,
e as pessoas da imaginação
são sempre acolhedoras.

Essa é minha capsula do tempo.



San, 26/03/2015

segunda-feira, 23 de março de 2015

Salmo


Que o ontem passe finalmente
pela porta do esquecimento
e as risadas voltem a ser 
calorosas e abundantes.

Que o agora seja o agora
não o "depois de amanhã"
nem o "ano que vem"
ou "algum dia".

Que não exista expectativas,
planos e cobranças
apenas percepções, emoções,
entrega plena.

Que possamos conjugar o "sou"
entremeado com o "estou"
na amplidão das consequências.



San, 24/03/2015

02:52 AM



Temo parar de escrever
e o dia já amanhece.

A persiana esta cerrada,
velho truque para segurar o ontem.

Como uma ilusionista 
inconsequente
nego as dores lombares,
os dedos dormentes.

Esse jorro de pensamentos
não é luminescente criatividade
apenas subserviente carência.

O show solitário
de se agarrar a falsa sensação
de permanência.




San, 24/03/2015

Obesa Est



Estamos famintos 
por tantas coisas!

Imensos vazios a ser preenchidos.

E lá vem o próximo jorro!

indecorosamente 
abraçamos o excesso.

Aplausos para os consumidores!

Não seja por favor 
demonstração viva
da compulsão semeada 
pelas engrenagens maldosas 
da sociedade.

Saciedade não dá lucro.

E lá vem o próximo jorro!



San, 24/03/2015

Armênia


Sublevanto o terror inenarrável
criado pelo ser humano
com seu apego, ira, 
cobiça, destempero.

Porque aquilo que foi parido pela morte
não pode realmente apodrecer.

E aqui me coloco dedo em riste
em rosto tranquilamente triste
como uma seta a apontar
os resíduos tóxicos da afronta 
da real humanidade.

Somos agora esse amontoado
de erros hiperbólicos,
inflados pelo ego,
inflamados pela incoerência,
soterrados pelo medo.

E incomoda incomodar
o que é comodo aceitar.

Mas é preciso um berro
para vibrar nos recônditos da inteligência
nos livrando desse estupor maligno
que permite a extrema violência.

Este abuso com alegria confesso
participo e faço manifesto
da minha sedição.



San, 22/03/2015