sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Filme antigo


Tenho um bom apetite
por coisas que são vazias de futuro
e carregadas de passado.

Eu me alimento hoje 

do seu amor
que a muito acabou.

O sonho de criança
que não tem mais significado.

O pai que desmanchou nos anos,
a mãe que somente me carregou no ventre.

Amo e me apego a todas as coisas

que não servem mais,
que não educam mais,
que não orientam mais,
que não salvam mais.

Então é certo que estou perdida.


E aproveito 
que não tenho nenhum futuro,
e nenhum amigo para me impedir
para dançar descalça na rua.

Eu desejo
que a vida me arrebate,
me abrace como um amante ciumento,
e me traga para o agora.

Agora,
e somente agora,
eu existo, 
mais nada.


San, 25/10/2013

Afronta ao meu esquecimento


Atento
tento acompanhar
seu movimento
lento

Mesmo sem intenção
me perco hipnotizado
na direção das mãos
afrontosas
liberadas

Exasperado
retorno a tempo
de entender
o contexto vazio 
poderoso texto

Sei que sou também
um totem encarcerado
pequenos defeitos
grandes promessas

Respeito
sua dança espasmo
mensagem
seta
indicação
resposta
afronta
ao meu esquecimento


San, 25/10/2013

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sopro



Ouça,
alguém cantando
ao fundo.

Oh sim,
existe um mundo muito rude lá fora,
pontiagudo, 
duro, cortante, 
lhe atinge como estilhaços 
entrando em seu coração,
cegando seus olhos.

Talvez você não o tenha visto,
esse mundo que não esta numa tela
esperando um click
não esta formatado com letras redondas
e efeitos coloridos.

É um mundo de fedor, 
medo, luta, choro continuo,
feito de pontes, restos de lixo,
chuva, rostos estranhos,
socos e rasteiras,
onde a fome e a humilhação
é companhia constante.

E então alguém canta
como uma mãe embalando 
um feto antigo.

Alguém canta,
bambeando,
ele canta,
um som limpo, livre,  
vindo de não sei onde
espantando a morte,
reunindo a vida despedaçada
um sopro de dignidade, 
talvez a alma,
o sonho,
sua substância.


San, 24/10/2013



segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Doi Codi

 

Ainda hoje
trago a sensação
da força da mão
nos socos que recebia
nem sei de quem,
nem sei porque,
encapuçada
e amarrada
na cadeira molhada
com meu próprio mijo.

Ainda tenho
a calcinha macerada
tingida com o sangue
que saia por todos os orifícios
quando estava no pau de arara
para confessar algo
que desconhecia,
e acusar alguém
que certamente não merecia.

Tenho ainda em minha boca
o gosto marrento
da água suja da privada
aquela mesma
que me era dada de beber
e o cheiro azedo
da comida velha
e embolorada
tirada do lixo
para ser servida a mim
depois de dias
de fome e desespero.

Ainda hoje pareço escutar
os  gritos,
choros, suplicas,
gemidos, delirios,
sons que brotavam
das paredes vizinhas
gente que eu nunca vi,
gente que nunca existiu
nos registros oficiais.

Ainda acordo
com o som do meu
próprio grito
durante a noite,
o mesmo
das noites frias
e intermináveis
que antecediam
os dias pavorosos
de torturas vis.

Mastigo
quietamente
o passado
que não cede
que não perdoa
que não explica
que não me transforma
que não me liberta
que não me mata.


Samy, 21/02/1971

sábado, 12 de outubro de 2013

Marciana


Tudo que você fala
tem nexo
em outra latitude
e longitude
que pena estarmos 
aqui
neste momento
e você parecer
tão estranha
criatura.


San, 07/10/2013

Ad Eternum


És pó e ao pó voltará,
a boca da terra
engolindo o último abraço consciente,
do sentir ao esquecimento,
recebe a terra em suas estranhas
a oferta do amor que não esmorece
mas se encontra mesmo 
nos mais terríveis momentos.

E eu aqui em perpétua proteção
tento imaginar todo desespero e confusão
que geralmente leva os casais 
a diâmetros opostos,
mas não vocês,
talvez nunca vocês.

Num átimo foram libertados
de duvidas, ressentimentos, 
perguntas questionadoras,
foram sacudidos e jogados,
apenas dois corpos que se conheciam
e se amavam,
bailando um ao outro.



San, 12/10/2013

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Porque eu não durmo


A noite é harmonia oculta,
o silencio profundo delicioso, 
sem a dodecafonia das manhãs,
xistos, ruídos, apelos comerciais,
latidos, cobranças, enfrentamentos.

A noite,  

alma de poeta,
abre sua ampla gaveta mágica
e tudo se esvai para o lago esquecimento,
aquilo que não somos e queremos,
aquilo que somos e não sabemos,
turbilhão escuro sugando a ansiedade da manhã,
os portos de chegada dos barcos naufragados.

Eu sei que para alguns a noite é mão pesada,
e como boca desdentada dá seu tapa de tristeza,
vicio, abandono, agressão matança,
mas não para mim,
ela se enrodilha em meus tornozelos
como um velho cão protetor.
suave e aconchegante.

As manhãs são emaranhados de tanta gente,
fiapos entrelaçados de tantas coisas que detesto, 
respirando o mesmo ar,
enchendo minha vida de ais carbônicos,
sufocando minha criatividade,
saturando meu espaço intimo com a casualidade,
banalidade, mediocridade.



A noite calados em suas camas,
tão profundamente quietos,
não são mais absurdos absolutos,
não são mais carrascos abusivos,
vitimas manipuladoras.
apenas respirações fundas pausadas,
pernas que dançam aqui e ali,
corpos que se mexem com a maré
das ondas imagens sem sentido.

Pois vem a noite e sopra para o outro lado
a força bestial da humanidade,
e no meu éden de milhões de estrelas
posso até ouvir com clareza
a musica primeva da sistole e diástole, 
sem subjugo, nomes, idade,
sem roteiros, classes, grupos,
apenas o silêncio terno,
apenas o silencioso mundo.


San, 11/10/2013

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Repatriação



Me levantei do barro
pingando poesia e sangue

Só quero saber porque

Só quero saber por quem

Ainda existe um buraco
de onde eu olho o mundo
eu fui a pouco parida
e já estou tão sozinha

Só quero saber porque

Só quero saber por quem

E agora eu já percebo
que sempre ocupei um espaço
dentro de um longo sonho
solto no seu cansaço 

Não quero saber do que
não quero saber para que
escapo desse delírio
de pertencer a você


San, 08/10/2013


Blues




Na vida que eu fiz

na vida que eu quis
tem todas as más escolhas
de gente infeliz

Guarde sua história para você
não é preciso aqui se justificar
já corri bastante por esse caminho
para saber que não levará a algum lugar.

Na vida que eu quis
na vida que eu fiz
tem todas as estúpidas atitudes
de gente infeliz

Eu já usei todas as mentiras 
e o infindável repertório de exageros
conheço bem a dissimulação
e fiz mestrado no teatro do desespero

Na vida que eu quis
na vida que eu fiz
tem todas as loucas companhias
de gente infeliz

E mesmo que o amor aconteça
você não irá reconhecer
é assim com quem esta sempre mergulhado
na amargura de viver

Na vida que eu fiz
na vida que eu quis
tem todas as misérias e enganos
de gente infeliz

San, 07/10/2013