terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Suavidade




Quando seus olhos encontram o meu
não existe desejo ou ganancia,
não existe cobrança ou ordens.
Não são os olhos de um predador
esmiuçando a presa,
e nem de um chefe
esperando obediencia.
O seu olhar vem preenchido
de algo precioso e raro 
bondade e suavidade.
Sim, você tem o amor 
que não classifica ou pune
que se alegra com minhas estranhezas
não tenta me moldar em outra coisa
e abraça feliz minhas diferenças. 
Aos seus olhos eu sou perfeita desse jeito
mesmo com todas as imperfeições
e traumas e sombras que carrego
posso ser eu mesma diante de você
e não me sentir envergonhada,
posso ser eu mesma junto de você
e não me sentir inadequada
posso ser eu mesma a todo minuto
livre de todas as cobranças do mundo
apenas aceitação e suavidade.

San, 22/02/2014

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Busca


Meu espírito tão pobrezinho
vive virando lixo,
obsessivo,
procura objetos amados
que foram perdidos,
e quando os encontra
os segura louco de contentamento
como se fosse mesmo ele
a pessoa que o perdeu.

De posse do seu tesouro
dá uma risada esganiçada,
solta uma lagriminha,
volta seus olhos em mudez
para os céus
como um agradecimento profundo,
e novamente se volta
a sua tarefa sem fim
e sem finalidade,
de acordo com minha mentalidade,
de revirar o lixo.

Um dia,
como que para testá-lo,
joguei meu livro de cabeceira no lixo,
ele mal se percebeu,
soltou um leve suspiro 
e mudou de direção,
fiquei encafifada.

Joguei fora uma escova de dente,
um pratinho de porcelana,
um meia de lã,
um gorro,
quatro poesias,
algumas fotos da família,
uma estatua de buda de madeira 
provavelmente da Tailândia,
um diário de menina,
algumas cartas de amigos recebidas,
nada lhe interessava.

Então ressabiada
entrei no lixão,
munida com sacos de lixo,
de pá na mão,
resolvida a dissolver o habitat
pernicioso
que meu espirito estava inserido
por sua loucura descabida.

Depois de horas de limpeza
encontrei um lenço de papel amassado
com marca de batom,
como que beijado,
e um telefone anotado
na beirada
em letras mirradas.

Teria ele ou ela telefonado
para ela ou ele?

Foi encanto, desespero, 
amor ou somente tesão
a motivação
de tal bilhete?

Interrompida minha tarefa
fiquei ali sentada matutando
na vida que existe em toda parte
anônima, intensa, vibrante
e de repente senti ao meu lado
meu espirito errante.

- Achou algo especial?

Ele me pergunta.

- Não sei, talvez!

Eu lhe respondo.

Então saímos juntos,
abraçados,
segurando o velho e sujo 
lenço de papel beijado,
tocados pela vida
soprados pela esperança
envolvidos pela alegria.


San, 20/02/2014






Enlutada


Nascida,
falta amor,
falta silêncio,
sobra cobrança
e descontentamento.

Escuto o tempo todo esse zunido,
lamento, xisto, apito, soluço,
misto das coisas assombrosas-delirantes
que os demais não se percebem.


Sou sensível ou confusa?


Omissa ou permissiva?


Patética ou oprimida?

E comprimida entre o certo-deles
e o meu-errado,
entre deuses vivos, mortos, superados,
entre os livros, o violino, as pinturas e os cães,
me armo.

Subo num diminuto espaço estabilizador,
seguro as correias dos sentidos inconscientes
e luto contra os pensamentos intrusos
e a horda de dementes
que se declaram 
meus orientadores-amigos-amantes-pais-doutores
gurus-parentes-juízes-conselheiros-professores.

Luto e refuto
luto e refuto
luto, canso, esmigalho,
levanto, caio, levanto, caio
luto e me entristeço
e volto ao começo
dentro de um ventre pobre e podre,
novamente sem nome.

Ainda falta amor
mas sobra silêncio
sem cobranças
ou expectativas
vão-se dias e dias
de onipresente 
descontentamento.

Nasço outro dia
se existir melodia,
volto como poesia
se encontrar espaço.



San, 19/02/2014

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Desconforto


Não quero mais as mentiras confortáveis
as mentiras que não me deixam ir além do comum,
que embotam meus pensamentos criativos,
aprisionam minha fome de conhecimento,
e negam meu saber interior.

Cansei de ficar no labirinto do senso publico,
ler aquilo que me indicam,
ver o que me permitem,
comer o que me proporcionam.
viver a vida escolhida por muitos
mas que não é realmente importante para mim.

Sei que andar em outra direção machuca e cansa
assusta os que temem as mudanças,
enlouquece os que afirmam a impossibilidade
de todas as outras qualidades e nuances da vida,
confronta os que lucram com a incapacidade alheia,
enerva os que se acomodaram com o mesmo gosto.

Não busco para mim o posto de salvadora de nada,
e nem quero apontar um caminho para outros,
apenas quero meu corpo e mente livres
dessas antigas e obsoletas amarras,
meu corpo flutuando num mar de luz e vida,
voando em todas direções desejadas.


San, 18/02/2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Mapa Mundi


Em algum momento perdi
a necessidade de conquistar
patamares e pessoas,
colocações e prêmios,
certezas e adulação.

De repente percebi 
que apenas respirar me fazia bem,
nada além de estar viva,
sem precisar de autorização 
e apoio externo.

Simplesmente acordei e vi 
que todas as coisas 
estavam no mesmo nível,
não mais classificava,
julgava, conferia, ponderava, reprimia,
negava, descredenciava, aferia.

Tudo se tornou uma só vida,
sem análise,
sem sofrimento,
sem expectativas,
sem medidas,
sempre esteve ali,
sempre estaria ali.

Então olhei para meu corpo
e finalmente enxerguei as marcações
pontos, números, meridianos, 
as linhas entre o mar e a terra,
setas de movimento 
da vida acontecendo em mim.

Coloquei a mão em meu coração
e encontrei a bussola
pulsando e vibrando
naquele espaço tranquilo,
naquele espaço de suavidade,
naquele novo mundo que emergia.



San, 16/03/2014

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Terapia

Em meu corpo
todos os dias
uma ópera
mambembe
se apresenta
assistida
por duvidas,
fantasmas,
falsas memórias,
ilusões perdidas.

Ao entardecer,
se ficar extremamente
quieta,
posso ouvir
os aplausos
e saudações
ao fim do espetáculo,
são intensos e curtos
como um espirro.

Ainda não conheço o autor,
o criador, 
o fauno exuberante louco sedutor,
que vageia semi escondido
pelos meus anos perdidos
com sua pesada carroça de sintomas
vendendo seu teatro do absurdo.

Mas vejo os resíduos de sua passagem,
os despojos, cacos, o lixo, 
as coisas quebradas que não se consertam mais,
e dai tento descobrir sua provável rota,
intenção, desejos, necessidades,
marco de partida,
ponto de chegada.


San, 02/02/2014

Antes que o dia acabe


Me espanta que façamos tão calorosamente
coisas que irão nos machucar
destruir, magoar, assombrar, regredir,
até mesmo anular todos os bons frutos da vida.

Me espanta como nos envolvemos
tão apaixonadamente
em coisas tão negativas,
tormentosas, sem sentido, perniciosas, imbecis.

Que a estupidez tenha um lugar de destaque
em nossos corações,
um lugar onde é ovacionada, justificada, idolatrada, ambicionada,
arquitetada, ansiada, propagada, vendida e comprada.

Depois caídos no fundo do poço da ignorância,
chorosos e arrasados,
tateando na hecatombe 
alimentada por nossas escolhas,
soframos de forma tão abjeta
a procura de outra ideologia venenosa e cega.


San, 28/05/1945

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Abaixo do céu

Não pensei
caçar estrelas
mas é só
o que faço.

Me tornei
fragmento
do desejo
coletivo,

A criança
que não 
pode crescer
presa
no firme laço
que segura
seus tolos sonhos.


San, 01/01/2014

Manifesto



Somos milhões,
massa podre amorfa mofada abandonada vilipendiada,
a loucura humana capturada num instante,
tão presente absurdo distante irreal banal miserável.

Somos milhões
caminhando sem destino tino sensatez segurança capacidade,
a sagacidade humana que nos separou de outros símios
destruição sem sentido.

E a mão que aperta o gatilho
é a mesma que acaricia o filho,
e o carrasco sanguinário 
é o mesmo amante delicado.

Somos milhões
inaptos dirigindo o carro alegórico da transformação evolução pureza ascensão,
insensíveis aos gritos daqueles que amassamos
com nossas obtusas abruptas massacrantes delirantes ideologias.

E assim tombam civilizações,
pulverizadas pela ganancia mascarada de mudança.

Somos milhões!!!



San, 09/02/2014

Jogos de amar 4


Toda espera me parece uma janela,
meio aberta, meio fechada,
numa sala vazia e abandonada.

Já esperei muitas coisas de mim mesma,

coisas que poderiam me permitir
chegar mais perto de você.

E eu estava enganada.


Não sou uma construtora de pontes,

sou uma mão que treme
tentando fazer suturas emocionais.

Então coloquei minhas esperanças no mundo,

e fui caminhando, procurando,
até que as pesadas expectativas 
machucassem meus ombros.

A realidade é outra,

mais sanguínea,
bruta, imediatista.

E enquanto crescia,

me esvaziava,
quanto mais me expandia,
mais ausência encontrava.

Você não vira,

eu não irei,
finalmente entendi.

Toda espera me parece uma janela.



San, 03/02/2014

Tino


Sempre fui confusa,
difusa,
dona de idéias inconsistentes,
e emoções inconvenientes,
abraçando causas míticas,
e ideais fantasmas,
assoberbada pela fantasia,
atabalhoada com a realidade crua e fria.

Minto - não é incoerência, é magia!

Sou atropelada
pela verdade-tanque-de-guerra-cotidiano,
perco algumas partes ditas essenciais,
novamente conto os danos,
e logo estou, 
cega, surda, muda, 
apaixonadamente repetitiva,
no meio da estrada do engano.


San, 05/02/2014

A vida exumada



Estou tão cansada de viver nos preâmbulos,
chegar ao final e encontrar exatamente o início.

Estou cansada da tortura da incorreção,
da certeza da indefinição.

Cansada de ser sacudida pela ansiedade,
puxada pela incoerência.

E ai alguém me diz: 
- Desça dessa corda bamba!
- Ponha seus pés no chão!

Como farei isso cidadão?

Eu não sou o corpo que se estende acima.

Eu sou a corda,
eu sou a corda,
eu sou a corda,
eu sou a corda,
eu sou a corda,
eu sou a corda.

O mundo é o vento,
suas crenças e palavras e atitudes
são pés que me atravessam,
sacodem,
estimulam,
machucam,
deixam marcas.

Eu sou a corda,
eu sou a corda,
eu sou a corda,
eu sou a corda,
eu sou a corda,
eu sou a corda.

Me largue aquele que me segura,
desate o nó que sustenta minha loucura.


San, 09/01/2014




sábado, 8 de fevereiro de 2014

Atrás de todas as portas


O que irei fazer com você Verdade?

Onde coloco toda a vida,
toda a vida detalhada 
e esmiuçada em invenções,
e malabarismos mentais?

Toda vida vivida 
com as mãos para trás
torcendo os dedos,
apertando o punho,
segurando a faca,
atada em mim mesma.

Mentir foi viver
mais do que fantasia,
opção,
espaço,
ambientação,
poder,
inserção,
escolha,
oportunidade.

O que faço agora com você Verdade?

Está carregada de sujeira,
raiva, medo, despreparo,
violência,
 dia após dia.

Não te conheço,
não me conheço.

Será preciso rasgar meu corpo
mais uma vez?

Abri-lo de ponta a ponta,
dar fuga ao refugo,
escoar toda maldição
o veneno do não dito,
sentido,
esperado,
temido?


Onde lhe colocarei verdade?


San, 01/02/14


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A curta história de nós dois


Perdi o guarda chuva 
que você esqueceu em casa.

O deixei no banco
encostado num canto
para poder passar
pela porta de segurança.

Voltei um tempo depois
mas ele não me esperou,
foi embora em outra companhia.

A vida é tão absurda,
e rápida 
que parece nunca
estar mudando.

São milhares de cenas
que não vi, 
não percebi, não pressenti,
não me preparei,
não me protegi.

Depois de cinco quarteirões
começou a chover
mas eu só lembrei do guarda chuva em casa,
exatamente porque 
ele não estava mais lá.

Então naquele momento
finalmente me dei conta 
que também perdi você
irrevogavelmente.

Desde criança eu tenho

esse pressentimento da dor
a dor que seria minha vida.

Muitas coisas tem ido embora,
perdidas nos despovoados
encantados, 
nos caminho tortos 
da minha vida.


San, 10/01/2014