segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Doi Codi

 

Ainda hoje
trago a sensação
da força da mão
nos socos que recebia
nem sei de quem,
nem sei porque,
encapuçada
e amarrada
na cadeira molhada
com meu próprio mijo.

Ainda tenho
a calcinha macerada
tingida com o sangue
que saia por todos os orifícios
quando estava no pau de arara
para confessar algo
que desconhecia,
e acusar alguém
que certamente não merecia.

Tenho ainda em minha boca
o gosto marrento
da água suja da privada
aquela mesma
que me era dada de beber
e o cheiro azedo
da comida velha
e embolorada
tirada do lixo
para ser servida a mim
depois de dias
de fome e desespero.

Ainda hoje pareço escutar
os  gritos,
choros, suplicas,
gemidos, delirios,
sons que brotavam
das paredes vizinhas
gente que eu nunca vi,
gente que nunca existiu
nos registros oficiais.

Ainda acordo
com o som do meu
próprio grito
durante a noite,
o mesmo
das noites frias
e intermináveis
que antecediam
os dias pavorosos
de torturas vis.

Mastigo
quietamente
o passado
que não cede
que não perdoa
que não explica
que não me transforma
que não me liberta
que não me mata.


Samy, 21/02/1971