domingo, 11 de outubro de 2009

Só para lavar a alma



Riacho, chuva, cachoeira,
tanta água tem conselho
para lavar a alma.

Cantochão, cantata, mantras,
palavras de sonho,
para lavar a alma.

Morte, morteiro, miséria,
tanto acabar,
só para renascer,
só para lavar a alma.



San, 01/02/1980

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Aprendendo com o homem que conhecia uma só letra


No B do Barco aprendi,
com o homem que conhecia uma só letra,
que o B é sempre um B...

Botão-de-flor, Bola, Bate-papo,

Balão, Brincadeira, Beira-rio.

E fui ficando assim,

inadvertidamente,
infantil, tola, feliz.

E ao final de nossa viagem,
ao final da lição,
abandonei todas as outras letras.

As palavras sempre me dividiram !

Aprendi a sentir,
a educar meus sentidos,
e não ser somente um depósito de frases,
graduações, bibliografia, teses, metas.

Antes meus sentidos eram B de bobagem,
aprendi então o B de Beleza, Bondade,
larguei a bengala da erudição,
alcancei a Bem-aventurança,
a vida de Bel-prazer.


San, 20/04/95

Gênesis




No começo era o verbo,
mas como o verbo sozinho era incompleto,
o homem criou o sujeito, substantivo,
adjetivos, pronomes, advérbios.

Eu, tu, ele,
nós, vós, eles.

Repetia as pessoas,
decorava os verbos.

Ser foi o primeiro que conheceu,
Ter o segundo,
Estar o terceiro,
Permanecer o quarto.

Outros verbos
a professora não ensinou,
verbos imperfeitos,
pragmáticos.

Como homem
varreu o ginásio,
conjugava na primeira pessoa do singular,
desdenhava na terceira do plural.

Aprendeu que os verbos
eram bastante flexíveis,
já não havia mais
o canto do castigo.


San, 13/05/1982

PORFIA



Aquilo-que-Sou e Aquilo-que-Fui
se encontram
todos os dias de tarde
para beber, contar piadas,
relembrar algo,
juntas lerem poesias.

E ali eu posso apenas 

ficar observando
essas duas figuras,
estranhas conhecidas,
odiosas,
enigmáticas criaturas.

E com um sensação
tão clara de abandono,
me parece que Todavida se foi agora.

Pelo jeito Todavida resolveu viajar,
a algum lugar tão fantástico e especial
que eu não me adaptaria.

Aquilo-que-sou
hoje esta terrivelmente evasiva,
se cantando invencível,
rindo e debochando
de qualquer pedra do caminho.

Aquilo-que-fui
sempre introspectiva,
alerta, clama cuidado,
“ todo mundo tropeça,
mesmo um gigante cai!”

E daí eu sinto sono,
muito tarde fui dormir,
e neste relento me deito,
para nunca mais existir.



San, 13/05/05

domingo, 20 de setembro de 2009

Caverna



Na tranquilidade aparente
do fundo do mar
eu estou.

Ondas e ondas do mundo
passam a todo minuto
sobre minha cabeça,
elas não mais me importam,
apaixonam, afetam
ou motivam.

No meu mundo particular estou,
silencioso, escuro,
cheio de pequenos seres estranhos.

Assim sou eu,
essa pessoa da profundidade,
essa pessoa
de um mundo que não é fácil,
não é popular,
que não é imediatamente agradável.

Para onde vão todos aqueles
que se cansaram
de serem levados
pela constância da maré.



San, 09/04/05

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

ESPERANÇA


Sentada nessa calçada,
olhando meus próprios pés desajeitados,
me pergunto se algum dia vivi
movida por algo além da esperança.

Será que aproveitei a vida
ou ela se aproveitou de mim ?

E assim olhando a vida
absurdamente bela,
absurdamente breve,
eu vejo que todos os absurdos
fazem parte da condição de estar vivo
das formigas as montanhas.

Meus pés ainda dormentes
trazem Socrates
de algum lugar tão distante,
de coisas tão obscuras
que julgamos nunca possuir.

E assim vou olhando a rua
sem ve-la realmente,
olhando a vida
sem vive-la realmente.

Sera que aproveitei a vida
ou ela se aproveitou de mim?

Mas algo pula
de dentro do meu abdomen,
das mãos, pernas,
e me levanto
como um boneco de mola,
impulsionada talvez pela rotina,
ou vergonha,
ou pela exigência da solidão.

E vou indo,
onde realmente não sei
e até o final duvido que saberei.

No entanto estou a caminho,
sim percebo,
sou movida por algo
além da esperança.


San, 25/01/04

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Desejos amarelos frutos verdes



Criança espera!

Não pegue o fruto que esta verde,
deixe amadurecer na arvore,
que na arvore fica mais doce,
fica mais gostoso.

Ah! Minha avó!

Bondosa e sofrida pessoa,
ali cutucando meu entendimento.

Ah! Minha avó!

Mulher do mato,
mãos rachadas do trabalho pesado da enxada,
mãos inchadas de limpar o chão de casa alheia,
mãos queimadas pelos fornos quentes
e tanto tachos de doce para vender.

Mulher de rosto vincado,
de dura lida,
de muitas histórias,
de idas e vindas.

Ah! Minha avó!

Cantando hinos
para acalmar o coração aflito,
batendo roupa no tanque
para escoar a raiva de ser esquecida.

Então peguei o fruto verde
e me amargou a boca.

Para mim,
naquele época,
era ela a mulher invisível,
risível, sem glamour,
tão simples, tão comum, tão boba.

Desejos amarelos eu tinha,
tudo na hora,
tudo do meu jeito,
achava que sabia tudo,
que sabia demais,
que sabia de coisas
que ela não poderia.

Colhi os frutos verdes,
amores verdes,
caminho verde,
verdes atitudes,
sempre pegando no céu da boca,
amargando.

Ah! Minha avó!

Preciso agora do seu cheiro,
do barulho que fazia mancando ao caminhar,
preciso do som da sua voz,
dos seus resmungos.

Preciso das suas palavras!

Agora sei avó
da dimensão de todas elas,
e de como sou apenas um ponto,
uma formiguinha,
em meio a esse enorme carrossel
que chamam vida.


San, 16/09/09

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Dicionário Emocional : C de Certeza



Certeza é uma palavra estranha,
"com certeza" pode ser tanta coisa :

Com certeza não sei nada!

Com certeza estou na duvida!

Com certeza me perdi!

Com certeza não é por esse caminho!

E assim "com certeza"
pode significar que estamos certos
da nossa desorientação,
que é melhor ficar calado,
qualquer coisa a mais
"com certeza" pode ser
um grande engano.


San, 13/12/04

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

JATOBÁ


Tantos verões já se passaram
como rios caudalosos 
que desbarrancaram
as margens frágeis da minha vida,
vieram e se foram rugindo,
dobrando pedras e arrancando
largos tocos.

Mas todos se foram e assim eu fiquei
mastigando esse fruto de jatobá,
daqui para lá sem nunca acabar.

Acocorada num V de alta arvores,
protegida e sedenta,
o bom e o ruim lado a lado,
sem saber qual mais intenso.

Agora ainda não desço,
apenas pelo habito,
coisa forte que toma 
todos lugares descampados do Eu.

Assim permaneço,
longe de tudo que possa fazer
o coração acelerar,
o sangue fugir, a mão gelar, a boca secar.

Numa paz que persevera
enquanto não vier alguém de machado.

Ainda nessa arvore, casa,
mãe, fuga, silêncio.

Tantos verões se passaram
e eu permaneço.




San, 29/10/08

Isotopos


Deitar raízes,
formar texturas,
tenazes,
envergar para tocar
o solo úmido,
quebrar
para o sol entrar
no amago.

Parar, correr, girar,
estar em movimento,
mesmo no mais absoluto
silencio,
mesmo na mais aparente
imobilidade.

Rasgar os tons,
semitons,
importância
que prende ao concreto,
a via unica,
sem permuta.

Será isso destruição ?

Será isso desprendimento ?

Ou sera cansaço existencial,
do banal, usual,
suicídio emocional ?

Crescer raízes
e se descobrir pedra,
formar camadas
e se ver rio,
ter textura
e ser o vento,
ter diâmetro
e ser o universo.

Crescer é não ser entendível,
esperável, concebível,
manipulável.

Crescer não é ter,
não é saber,
não é querer,
é o simples ato
de se permitir
realmente existir.

A dor faz crescer ?

Ou sera o amor ?

Ou a compreensão ?

O tudo, todos,
ou sera apenas se transformar
em multidão ?

Crescer é a mais absurda
e absoluta
experiência de viver,
crescer é ir voltando,
é ser perdendo,
é ter doando.



San, 03/10/94

Intenção



Um prego solto
não segura nada,
perdido ali no chão,
e sem martelo
não tem rumo
e sem força
não tem prumo,
mas o que vale mesmo
é sempre a malvada
intenção.



San, 29/10/2008

Criador e Criatura



Eu me crio
e recrio a cada dia,
apago minhas marcas,
reconto meu surgimento,
me transformo
num Deus
necessário
e a mim mesma adoro.

Então algo irrompe
em meu peito,
e nego minha própria origem,
mergulho nas perguntas,
corrompo minha fé,
e triste caminho a procura
do Deus que tanto amei.

E o encontro ali,
sentado no meu banco preferido,
lendo minha agenda-testamento,
e assim conversamos amigavelmente
novamente o abraço,
já não mais um Deus,
mas um amigo.

O levo a descansar,
dormimos juntos,
acordamos novamente único,
e surgem novos mitos.




San, 14/12/2004

SETENTRIONAL



O pio longo da coruja rasga o silencio
do seu coração solitário.

Andando na ROAD 36 ao entardecer
ele divaga se não tem lembranças
ou se nunca conheceu alguém.

Os coelhos pulam ao longe,
entre o cactus e os arbustos retorcidos,
o vento canta manso:
- Mais longe ! Mais longe !

Os seus passos são tão cadenciados
que parece que é a estrada que anda
e ele apenas dança.

Dentro dos bolsos do seu velho blusão
traz pilulas de café,
balas de hortelã,
alguns guardanapos de papel
e outras relíquias sagradas da civilização.

Ele sabe que seu cabelo esta grisalho,
ele sabe que já viveu meio seculo,
ele sabe que deve ir mais longe.



San, 23/08/94

A TORRE




Não vou arrumar as camas,
os pratos hoje quebrarei,
as roupas permanecem
aonde estão,
e jogadas no chão
me perguntam
aonde pretendo chegar.

A nenhum lugar eu respondo,
pois não estou a chegar,
mas a sair,
sair do marasmo da perfeição criada,
tanta vida idealizada,
que percebi
é não vida,
é não eu,
não posso levar ao amanhã
o que nem ao menos hoje sou.

E assim a rua corre para mim,
pois hoje é o dia dos avessos,
eu sacudo o vento,
as arvores me balançam,
e descubro tanta coisa
que não sou.

Não se entristeça,
eu digo a aquela voz
que tenta cantar
uma canção com métrica,
já na pauta,
tão cordata.

Não se entristeça,
mesmo que seus conselhos
hoje sejam inócuos,
ainda assim é uma voz
com muita substância.

Me cante uma canção de ninar,
apenas,
e assim os caminhos
vão por mim desintegrando.

Nada mais se mexe nesse ser
que agora tem movimento,
estranho isso,
estar tão quieto
em meio a essa imensa sinfonia.



San, 05/07/05

domingo, 13 de setembro de 2009

Lembranças de muito longe



Peguei um trenzinho velho
numa antiga estação
que ia do mundo sem graça
até seu coração.

Ele ia devagar
como os trens de didai,
os trens que a muito não via,
mas que apitam por aqui.


Mas era um trem cheiroso,
não duvide disso não,
cheirava gente viva,
cheiro de imensidão,
tinha cheiro de broa,
de risada também,
tinha cheiro de avó,
de amiga de além.


E cada porto parado
ele vinha apitando,
tudo me estremecia,
e no livro que eu lia
uma pagina perdia
e isso nunca acabando.


Por fim alguem de leve
veio me sacudir
pois meu destino eu passei
isso que fiquei a dormir,
e agora estou meio perdida
no meio de um mato sem fim,
e o seu coração que é bom
esta longe de mim.



San, 06/07/2005

sábado, 12 de setembro de 2009

SUBSTÂNCIA



Não preciso de substância
mas sim de grandes espaços
onde o vento me faça musica,
o tempo me torne escultura,
e a seus olhos eu seja poesia.

Que adianta me transformar
em corpo denso
se nem em mim mesma acredito.

Que adianta me limitar
ao corpo denso
se nem em mim mesma acredito.

Sou apenas o sonho
de um homem que caminha devagar,
e seu relógio corre para trás
para que possamos
do passado 

nos curar.


San, 06/07/2005