Quando eu não podia andar
PERNAS me parecia uma palavra
muito sedutora e mágica.
Parecia ter todo o poder do mundo,
a capacidade de romper ciclos,
criar experiencias, estados, situações.
Eu sonhava com pernas,
pernas que tinham também asas,
me levavam a lugares inacreditáveis,
o lado mais inóspito do Himalaia,
um templo perdido na Birmânia,
perto de uma fogueira
nos acampamentos dos sertões.
Não havia limites para aquelas pernas,
apesar do médico tentar me explicar
exaustivamente,
que as pernas recebem
impulso elétrico do cérebro
através de uma rede no corpo todo,
e que bastava uma pequena curva,
nó, rompimento,
em algum desses nervos
que as pernas ficariam bobas,
sem força, futuro,
determinação, utilidade.
Mesmo assim eu não duvidava
do poder das pernas,
estava acima de qualquer razão,
estudo neurológico,
certeza matemática,
eu tinha uma inabalável fé
nas pernas.
Elas já haviam me conduzido até ali,
seriam elas que iriam
me levar para longe também.
Primeiramente
tive que educar as pernas,
treina-las, força-las,
relembrar os tempos de criança
re-aprendendo a andar,
bambear, cair, levantar.
Eu cantava para as pernas,
musicas sem tradução lógica
mas de grande definição emocional,
e me imaginava dançando
num bar no Missouri,
sei lá por que,
junto com Etta James
- sei que ela me compreenderia!
E então minha confiança
e dedicação as pernas
não foram em vão,
a vida voltou
com os movimentos.
Depois de voltar a andar
eu nunca fui
ao lado mais inóspito
de coisa alguma.
Eu fui diretamente para casa,
para minha cadeira,
e tenho me mantido assim
sentada, lendo, escrevendo.
Pernas adormecidas,
as vezes ralhando comigo,
inchando, dando câimbra,
coceiras, pontadas, cutucando.
Agora entendo o médico
quando ele dizia
que somente as pernas
não garantem o movimento,
- elas são uma parte! ele dizia.
As pernas esperam,
entendiadas e mortificadas,
enquanto eu procuro
o santo gral da intenção,
o rastro de luz, energia,
a fagulha da movimentação.
San, 29/08/11