sexta-feira, 25 de abril de 2014

Nas minhas lembranças



Você falava quadrado
e nós rolávamos redondos,
alegres,
pelos barrancos.

Você falava adulto
e nós corríamos crianças
pelas campinas perdidas.

Você gritava bem alto
e nós riamos baixinho
sem entender tamanha filosofia
descabida.

E nós viramos de lado,
você se perdeu pelo mundo
e ficou esquecido.

Você tomou outros rumos
e nós ficamos parados
curtindo o doce da vida,
e crescemos nas mesmas badernas.

Mas hoje eu falo quadrado,
adulto, grito, reclamo e filosofo,
e você ri bonito, criança, alegre, redondo,
você escondido
nas minhas lembranças.


San, 1981

Não seremos iguais jamais


Existe o tempo que vem
e mexe o nosso destino,
existem tantas coisas doidas,
existem tantas coisas por aí
que nos fazem parar e pensar.

Existem tantas pedras nas ruas,
existem palavras nuas,
e tantas coisas que nos obrigam
a amadurecer mais cedo.

Existe a guerra e o ódio
que marca a gente por dentro
e traz um pressentimento
que não seremos iguais jamais.

Existe o amor e o sonho
que vencem todos enganos
e até param o tempo
para que possamos viver.

Existem tantas coisas doídas
existem tantas coisas soltas por aí,
que mexem bem no fundo da gente,
que mexem de tal maneira
que a vida inteira vai mexer.


San, 14/03/1982


Cosmo





Quem sabe
já seja esteio,
maré cheia,
primavera,
florescência.

Quem sabe
já não seja tarde,
já esteja em Marte,
trópico,
utópico.

Quem sabe
já esteja turvo,
já seja noivo,
se mantenha puro
e ao todo.

Quem sabe
já seja nós,
já esteja agora,
eterno, 
completo
e em paz.


San, 10/04/1982

Grão de pólen



Queria ser
como um grão de pólen
levado ao vento.

Ás vezes me sinto
tão velho e cansado,
sem forças para viver,
mas espero vir
o vento do norte
que traz
as ilusões do mundo.

Queria ser
como um grão de pólen
levado ao vento.

Bailando nos braços
do vento do norte
até encontrar seu corpo,
que espera semente fértil
para germinar sonhos loucos.

Queria ser
como um grão de pólen
levado ao vento.

Ás vezes me sinto
triste e abandonado,
preso dentro de um vácuo,
mas espero vir
o vento do norte
que traz meu pedaço de sonho.

Queria ser
como um grão de pólen
levado ao vento.

Queria ser livre
como um grão de pólen
levado ao vento.


San, 13/08/1981


Sidarta sem data



Hoje,
ano 1982,
pega sua veste cor da terra,
surrada,
seu caderno de orações,
sei sino,
seu incenso e rosário.

Hoje,
ano ritmo,
dos nêutrons,
calça sua sandália de pano trançado
com sola de pneu,
guarda entre seu manto
uma xícara para o chá,
um bocado de tsampa.

Prende seu cabelo num rabo
com uma fita dourada,
faz a marca vermelha viva
na testa,
um chumaço de negro
nas pálpebras.

Hoje,
valentemente 
ano ano
dos frios
e concretos
1982
renasce Sidarta
sem data.


San, 12/01/1982


Amar, verbo impositivo.



Como pode alguém
que se diz amor
amar de modo subjetivo,
esmagador,
fazer de sua presença,
local restrito
e numa pequenina
margem de vida
um barquinho salvador?


San, 1979

Essa minha loucura



Tente me curar
dessa chaga viva,
o meu coração despedaçado
não tem conserto não,
esse defeito é que gera
essa dor no peito.

Vontade de viver,
ser livre,
ser feliz,
mas o mundo 
a me impedir,
e o mundo 
é bem maior do que eu.

Por que tenho
que ficar assim,
aqui,
esperando
decisões alheias,
vazias?

Sonhos
já se perderam
nas dores do parto,
transformações,
adulto sem emoções.

É tão tristonho
não poder correr sem destino,
menino,
lindo,
puro,
cadeias,
incompreensões.

Tente me achar
um remédio doce e certo,
melhor do que essa minha loucura,
efeitos
dessa alma envergada,
que nada
sempre contra a correnteza.

Me cure,
espante essa tristeza,
frieza,
desamor,
me cure,
solidão crônica.

Mas por favor
não me prenda,
não me torture,
não me obrigue
a me afastar de mim.

E se então
não puder me amar
desse jeito,
me deixe
ser imperfeito,
me deixe
com essa doença,
me deixe
morrer sozinho.


San, 03/06/1981

Tamanho amor



Vou fazer mil barquinhos de papéis
com minhas poesias.

Será que me enxergará?

Será que chegará o dia?

E o amor será mais 
do que lampejo,
desejo construído
e destruído
dia a dia
pelo pensamento.

Será que ventará?

Será hoje o dia?

Vou fazer mil perguntas 
para o papel.

Será que você escutará?

E me responderá um dia?

Hoje acordo
comendo solidão,
digerindo tardes frias,
sonhando sempre
com as suas mãos
num abraço suave,
num espaço seguro,
nesse nosso mundo,
nesse hoje-agora.

Será que chegará?

Será que apoiará
e desejará
e entenderá
tamanho amor?


San, 21/02/80

Frevo frenético


Moça pula,
moça acorda,
moça rebola,
arrume tudo
e vai para a escola,
e faz as unhas,
cuida do cabelo,
tira pelos.

Moça agita,
leia livros,
veja filmes,
se instrua,
seja modelo,
seja bonita,
desejável,
a mais vista.

Moça senta,
moça aguenta,
observa, 
não responde,
sorria, sorria, sorria,
limpa a casa,
cozinha,
tenha filhos,
faz mestrado,
seja exata,
econômica.

Moça ore,
acredite,
cante,
participe,
moça, moça, moça,
dança, dança, dança,
quieta, quieta, quieta,
não comente,
não exija, 
não entenda.


San, 15/03/83

Bicho papão


Quando era criança 
sonhava em crescer depressa
me tornar um adulto bem forte
e aí nunca mais teria
medo dos bichos-papões.

Que bom! Que bom! Quem bom!
Viver sem assombração!

Entrei na adolescência
e fiquei mais destemida
experimentava a vida
encarava muita briga
não temia a confusão.

Que bom! Que bom! Que bom!
Viver sem ferrolhos e normas.

Começou a vida adulta
e eu fui ficando maluca
com tanta exigência de fora
com tanta conta, compra, reforma,
trabalho, metas, conduta.

Que ruim! Que ruim! Que ruim!
Voltaram os bichos papões!

E agora envelhecendo,
sentada na minha cadeira,
dou risada a tarde inteira,
sem medo daqueles bichinhos
coitados que não tem ninho
e vem infestar a mente
aberta e subserviente
de quem procura razão.

Que bom! Que bom! Que bom!
Viver sem proteção!


San, 24/04/2014




quarta-feira, 23 de abril de 2014

Colapso


Cansada de pensar
pensei que podia parar,
pensei horas
sobre a possibilidade,
então simplesmente cai de lado
num estupor,
embargo do meu cérebro sofredor.

O silêncio assusta 
quem só se vê pensante
e dizente,
conhecedor de tudo e de todos
palpitador insaciável, 
irrestrito professor-curador
de causas alheias.

Estou cheia,
saturada de palavras,
que correm frenéticas 
em busca do sentido,
de mim para mim
do meu para o seu
de tudo para o seu
e de volta para mim.

Que pensamento chinfrim
gastar a mente tentando classificar
todas as coisas
e coloca-las em seu devido lugar,
controladas, cordatas e com nexo.

E assim caída
como um feto sem saída,
envolta no velho ar sardônico
do mundo em colapso
veio o lapso,
o puro abandono,
a iluminação.

O nirvana é feito de nada,
nada a questionar,
nada a resolver,
nada a manter ou soltar,
nada que lembre eu ou você,
nada que queira mais.

Então no silêncio do abandono,
superando a teima da existência física,
cai pelos meus dedos
como boneca perdida,
e sai para a vida,
a vida de tantos anos.


San, 23/04/2014