quarta-feira, 5 de março de 2014

ASTIGMATISMO



Eu lhe vejo 
linda criatura empalada no cotidiano,
com todos seus detalhes numinosos,
soberba e rude
prevaricando com a divindade.

Que fazer  
com tão perfeita
e chocante 
criação?

Criaremos livros,
decidiram os homens,
criaremos livros encapados com pele,
costurados com tendões,
escritos com sangue.

Livros que confirmem a obscenidade
desse inexplicável e soberbo ser,
livros que se calcem num pecado
terrível e imaginário,
livros modelados com a inveja e medo
fermentados nos corações.

E tudo será sagrado
menos aquela criatura,
e tudo deverá ser respeitado
menos aquela criatura,
e em tudo terá a voz, o hálito, a intenção,
a emanação da divindade
menos aquela criatura.

E assim do homem veio a mulher,
ele a pariu do seu ventre podre e doentio,
a tirou de uma costela frágil,
a moldou com o barro purulento de um charco,
a espirrou das suas fossas nasais,
a empurrou de uma grande pedra voadora
para se esborrachar no chão duro da realidade.

Eu lhe vejo
linda criatura.


San, 05/03/2014