segunda-feira, 31 de março de 2014

Colheita


Aconteceu,
ninguém esperava,
mas nos corações algo indicava
que poderia ser assim
a transformação da escuridão dos homens.

O seres humanos forma esmagados
pelo certo e o grande errado
das suas omissões.

Aconteceu,
de repente,
apesar de todos avisos,
de todos hinos,
descontentamento,
de toda preparação.

Mas nós ficamos surdos,
ficamos cegos,
ficamos em casa
vendo os programas de televisão,
enquanto o grande massacre
se processava lento, 
letal e desumano.

Bem que eu tentei avisar
para você se preparar 
para os horrores absurdos da guerra,
confronto sobrenatural,
morte banal.

Teve que acontecer,
ninguém esperava,
teve que machucar para acordar,
mostrar de vez a injustiça dos homens,
a luta sangrenta pelo poder.

San, 06/08/1981

quarta-feira, 5 de março de 2014

Papai e mamãe


Eu não nasci com medo
fui ensinada a ter medo
pelas mesmas pessoas 
que hoje me cobram
 auto confiança e segurança.

Por muitos anos eu ouvi e absorvi
suas histórias horripilantes,
maldosas, preconceituosas, raivosas,
aprendi com eles que nasci 
com um defeito essencial
também denominado pecado.

Eu nasci olhando para luz,
com mãos flexíveis 
que desejavam com alegria
 sentir a vida 
e uma pequena boca
que tentava experimentar tudo.

Mas com essas pessoas
aprendi que meu corpo era vergonhoso,
perigoso, impuro, um inimigo,
e que a curiosidade era 
um imenso buraco negro
que consumia tudo,
que deveria estar sempre apreensiva
 e em constante estado de alerta.

Com eles aprendi a selecionar
refutar, negar, afastar,
ter conceitos acabados e imutáveis
a não aceitar nada além
do que estivesse em conforme
com essas idéias e conceitos,
tudo mais era impróprio e defeituoso,
uma aberração que não merecia
a chance da vida.

Estranhamente
não aprendi nada sobre o amor pleno,
puro, abrangente, praticado
fui sim constantemente posta diante
do exemplo do amor martírio,
amor dolorido, absorvente, sem espaço,

Eu nasci sem medo
foram eles que criaram
meus pesadelos.


San, 05/03/2014

ASTIGMATISMO



Eu lhe vejo 
linda criatura empalada no cotidiano,
com todos seus detalhes numinosos,
soberba e rude
prevaricando com a divindade.

Que fazer  
com tão perfeita
e chocante 
criação?

Criaremos livros,
decidiram os homens,
criaremos livros encapados com pele,
costurados com tendões,
escritos com sangue.

Livros que confirmem a obscenidade
desse inexplicável e soberbo ser,
livros que se calcem num pecado
terrível e imaginário,
livros modelados com a inveja e medo
fermentados nos corações.

E tudo será sagrado
menos aquela criatura,
e tudo deverá ser respeitado
menos aquela criatura,
e em tudo terá a voz, o hálito, a intenção,
a emanação da divindade
menos aquela criatura.

E assim do homem veio a mulher,
ele a pariu do seu ventre podre e doentio,
a tirou de uma costela frágil,
a moldou com o barro purulento de um charco,
a espirrou das suas fossas nasais,
a empurrou de uma grande pedra voadora
para se esborrachar no chão duro da realidade.

Eu lhe vejo
linda criatura.


San, 05/03/2014

Poesia livre



A poesia é o rasgo no cotidiano
um vergão no conceito,
uma abertura no tempo,
por onde milhares de coisas 
aparentemente sem nexo
escorregam,
são trituradas pela força do sentir,
e ai são ser sorvidas,
e cuspidas em diminutas letras
se moldando em absurdo,
lirismo, 
transgressão, 
beleza,
possessão.

- Eu não sou livre! 

Me disse a criança
enquanto agachada e absorta
remexia o lixo das emoções do mundo.

- Eu não sou livre!

Reafirmou a criança
ao encontrar um giz de cera
quebrado e sujo.

- Eu não sou livre!

Meu coração sussurrava baixinho
enquanto a ouvia.

E pegando entre seus pequenos dedos
seu giz de cera velho e disfuncional
puxou as folhas soltas vazias 
que eu trazia em minhas mãos.

Desenhou um pássaro, um gato, uma árvore grande,
uma casa, um sol nascendo, uma flor, uma nuvem redonda,
uma menina sorrindo e pulando corda.

E já satisfeita saiu correndo sem propriamente uma direção.

Então fui dando nomes e sentido para as coisas
para o pássaro, gato, árvore grande,
casa, sol nascendo, flor,  nuvem redonda,
para a menina sorrindo e pulando corda,
a menina lendo sentada na mureta,
a menina caminhando na praia e recitando bobagens,
a menina sentada diante de um computador,
a menina criando poesias livres.


San, 01/03/2014


盆栽



Sua meticulosa educação
me fez essa exótica criatura,
persistente em seu trabalho-desamor
tornou perfeita minhas imperfeições.

Como uma bela imagem estrutural
vivo nesse mundo tosco prisioneira
dessa estranha arte conceitual
totalmente disfuncional para a realidade.

Por anos fui varrida pelos ventos
da sua raiva, mágoa e desilusão
até brotar em mim sua loucura
transformada em placida arte pura.

E cultivada em algo que não é normal
e nem ao menos anormal na banalidade do mau
sou presa a um raso solo que parcamente me alimenta
sempre faminta ao que pode me manter ainda viva.

Mãe, por que me fez sua obra prima?


San, 03/03/2014

Stand up


Às vezes eu acordo
enfurecida com o presente
sufocada pelo passado
cega para o futuro.

Às vezes eu acordo
entusiasmada com o futuro
embalada pelo presente
esquecida do passado.

Às vezes eu acordo
amordaçada pelo passado
duvidosa com o presente
exigente pelo futuro.

Às vezes eu acordo
animada com o presente
desligada com o futuro
agradecida pelo passado.

Às vezes eu acordo
entorpecida pelo futuro
apavorada com o presente
resguardada pelo passado.

Às vezes eu acordo
eletrificada pelo passado
desgastada com o presente
desalentada pelo futuro.

Às vezes eu acordo
às vezes eu acordo
às vezes eu acordo.



San, 05/03/2014

terça-feira, 4 de março de 2014

αγάπη


Estranho feito é o amor
alimentar em suas próprias entranhas
um sentimento tão enigmático
obscuro
e assustador
como uma bola de neve
descendo a montanha
a cada minuto mais intenso
descontrolado
avassalador.
E assim mesmo querer ser
sonhar ser
chorar por ser
desejar ser
esperar ser
esmagado pelo impacto
despedaçado
e entrar no outro
habitar o sonho do outro
o desejo do outro
os planos do outro,
sim, 
quão enigmático
e estranho é o amor.
Ser tomado e domado
perder a destreza da obviedade
a clareza da singularidade
o poder da maioridade
oferecer sua própria identidade
de repente
gritar com o corpo todo
figado, baço, pâncreas, rins, 
estômago, intestino, pulmão,
garganta, coração,
exigindo toque, beijo, aperto,
intimidade, aconchego,
dissolução,
solução.
Será defeito o amor?
Peças perdidas 
de outros mecanismos
vivendo em busca
de apoio,
impulso,
encaixe perfeito
força que possa superar 
a abominação
de entrar e sair desse mundo
sem contatos,
sem identidade.
Imenso e irreal
colonizador e liberador,
aniquilante e criativo,
sólido e imponderável,
estigmatizante e curativo,
ambíguo e normativo,
desvairado e padronizado, 
que coisa perigosa é o amor.


San, 04/03/2014